Um legado de
promessas quebradas

Por Barbara Fraser e Marilez Tello

Lindaura Cariajano Chuje se lançou à margem do rio e avançou pela floresta seguindo uma trilha que só ela podia ver. Um passo à sua frente, um jovem com um facão desobstruía o caminho, enquanto ela dava as instruções: Um pouco à esquerda, um pouco à direita, agora em frente. Era uma manhã abafada de setembro de 2018 e os únicos sons eram o do zumbido rítmico das cigarras e o ruído abafado do facão.

Poucos minutos depois, houve uma mudança sutil no solo macio, pois o terreno se tornou irregular, com depressões muito leves. Cariajano fez uma pausa, descansando a mão sobre uma pequena lápide redonda de madeira quase imperceptível em meio à folhagem tropical.

“Esta é a minha primeira filhinha”, disse ela.

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Lindaura Cariajano Chuje descansa as mãos sobre a lápide simples do túmulo de sua filhinha no cemitério próximo à aldeia Kichwa de Vista Alegre, no rio Tigre, no Peru. Foto: Barbara Fraser

Cariajano era uma jovem mãe quando o riacho que fornecia água e peixes para ela e outros moradores de Vista Alegre, uma comunidade indígena Kichwa ao longo do Rio Tigre, no nordeste do Peru, se tornou negro. Em algum lugarrio acima,um poço ou um cano de um dos mais novos campos de petróleo do Peru vazou nas imediações da floresta e nos cursos d’água e o petróleo foi levadocorrenteza abaixo.

Não muito tempo depois, as pessoas da aldeia começaram a adoecer com cólicas estomacais. Muitas morreram, contorcendo-se de dor e vomitando sangue. Entre elas estava a primeira filha de Cariajano, Lisette, de 6 meses. Mas não estava sozinha. Acenando com o braço em um arco, Cariajano gesticulou para o cemitério tomado pela vegetação. “Todas as crianças estão aqui”, disse ela.

O Rio Tigre serpenteia o maior campo de petróleo do Peru, conhecido agora como Bloco 192 [Lote 192], em uma região habitada em grande parte por indígenas Quechua, Achuar, Kichwa, Kukama e Urarina. Quando os prospectores descobriram petróleo ali em 1971, funcionários do governo prometeram que a indústria traria desenvolvimento para uma região que definhava desde o colapso do boom da borracha meio século antes.

Mas 50 anos de produção de petróleo deixaram feridas profundas nas comunidades e na terra. Empresas mal regulamentadas desmataram florestas para abrir caminho aos poços de petróleo e a uma rede de oleodutos que os conectam a instalações de armazenamento na região e na costa, a mais de 800 quilômetros de distância. Os derramamentos de óleoeram ignorados, enquanto a água produzida — a água quente, salgada e carregada de metais extraída dos poços com o petróleo — era descartada em riachos ou no solo.

Neste canto remoto do Peru, onde ainda não há estradas, exceto as construídas para servir os poços de petróleo, a maioria das pessoas ainda bebe água não tratada de rios ou riachos. Quando o rio ficava negro ou a água tinha gosto salgado, aqueles que podiam cavavam poços ou caminhavam até afluentes mais limpos. Aqueles que não tinham escolha afastavam a mancha oleosa e tiravam a água que parecia limpa, sem saber que ainda continha hidrocarbonetos, metais pesados ​​e outros tóxicos.

Quando o Peru começou a implementar uma legislação ambiental mais dura na década de 1990, danos irreversíveis já tinham sido causados. À medida que os membros da comunidade indígena passaram a entendero risco representado pelos resíduos tóxicos provenientes das operações de petróleo, começaram a se organizar para exigir água potável, assistência médica, limpeza dos locais poluídos e restauração dos ecossistemas envenenados. Àquela altura, porém, a relação deles com as petrolíferas era complicada, pois a indústria geradora de empregos e de alguns outros benefícios era a mesma que tinha contaminado suas terras, seus cursos d’água, peixes e caça e causado danos ainda desconhecidos à sua saúde.

À medida que a indústria declina, com os campos de petróleo se esgotando e as mudanças climáticas afastando o mundo dos combustíveis fósseis em direção à energia renovável, as comunidades nos campos de petróleo amazônicos do Peru ainda carecem de água potável, sistemas de saneamento, eletricidade, assistência médica e escolas decentes. Com a guerra na Ucrânia elevando os preços do petróleo a níveis recordes, funcionários do governo tentam dar uma nova vida ao setor. E embora um estudo recente do Bloco 1AB, como 192 era originalmente conhecido, e outro do vizinho Bloco 8, tenham estabelecido as bases para a reparação futura dos locais poluídos, esse trabalho – se realmente executado – levaria décadas e custaria bilhões de dólares.

Mas, apesar do futuro incerto, o tempo não apagará a lembrança de uma indústria que deixou uma marca duradoura na região e em seu povo.

Primeiros sinais de mudança

Lindaura Cariajano de oito anos e outras crianças estavam nadando quando ouviram estranhos se aproximando pela floresta. Elas fugiram em pânico, deixando para trás até as suas roupas. Os homens lhes disseram: “Estamos limpando o terreno. Estamos procurando petróleo”, lembrou ela. “Minha amiga me perguntou: ‘O que é petróleo?’”

Pouco tempo depois, mais gringos chegaram em um helicóptero – era a primeira vez que a comunidade via uma máquina dessas. Georgina Vargas, parteira de Vista Alegre, lembrou-se de se refugiar em sua casa, onde se escondeu em uma pilha de roupas. Mas seu marido, que já tinha vivido na distante planície do Rio Amazonas, não se perturbou. Ele falou para não ter medo e permitiu que os intrusos acampassem em seu jardim.

Cariajano lembrou-se dos adultos se encontrando e decidindo permitir que os homens construíssem seu campo de trabalho na beirada comunidade. Os trabalhadores ofereciam guloseimas às crianças, como bolachas e geleias – itens que nunca tinham visto antes – ou lhes davam a comida que sobrava das suas refeições. A mãe de Cariajano advertiu seus filhos para não comerem a comida estranha, dizendo estar envenenada e que havia rumores de que os forasteiros eram pelacaras, criaturas que tiravam a pele do rosto de uma pessoa e sugavam sua gordura corporal, que na Amazônia são muitas vezes associados aos estrangeiros de pele clara.

Por mais perturbadores que fossem, esses encontros iniciais mal davam um sinal das mudanças drásticas que se estenderiam rapidamente pela região bastante isolada, que incluía as bacias hidrográficas de Pastaza, Corrientes, Tigre, Chambira e Marañón, à medida que milhares de trabalhadores se reuniam para desenvolver o que se tornaria dois dos campos de petróleo mais produtivos do Peru.

Primeiro vieram os trocheros, que desobstruíram as trilhas ou trochas para a exploração sísmica. Os moradores ouviram explosões e sentiam as vibrações, enquanto os trabalhadores perfuravam e disparavam cargas em intervalos de 100 metros ao longo dos caminhos, criando ondas de choque que permitiam aos engenheiros mapear os depósitos de petróleo.

Um homem pesca entre os pilares de uma plataforma de petróleo abandonada perto da comunidade de Cuninico, no Rio Marañón, na região de Loreto, no nordeste do Peru Foto: Ginebra Peña

Os homens passaram semanas desobstruindo as trilhas com vários metros de largura ou mais pela densa vegetação tropical e limpando áreas maiores de tempos em tempos para permitir que os helicópteros pousassem. Eles eram acompanhados por uma “maquinaria ensurdecedora, composta por furadeiras portáteis, geradores de eletricidade, compressores de ar, motosserras, motores de popa, veículos terrestres e helicópteros, um barulho constante”, escreveu a advogada de direitos indígenas Lily la Torre em seu livro Só queremos viver em paz!

Aldeias inteiras foram deslocadas para dar lugar aos campos de trabalhadores e os trocheros, ao lançarem aslinhas sísmicas, às vezes cortavam diretamente uma comunidade. Nas duas décadas seguintes, mais de 10.000 quilômetros de linhas sísmicas foram limpos no campo de petróleo conhecido primeiro como Bloco 1AB e mais tarde como Bloco 192, de responsabilidade da Occidental Petroleum, e mais de 5.000 quilômetros no vizinho Bloco 8 e 8X, operado pela empresa estatal Petroperú.

Trabalho endividado e rios tóxicos

A ruptura trouxe uma cascata de mudanças para as aldeias Quechua, Achuar, Kichwa, Kukama e Urarina ao longo dos rios, de acordo com a antropóloga equatoriana María Antonieta Guzmán-González, que estudou os impactos da indústria do petróleo, especialmente na parte superior do Rio Tigre.

“A chegada da petrolífera significou a vinda de muitas pessoas – de muitos trabalhadores, mas também de comerciantes, que se estabeleceram na área, além de vendedores”, disse ela.

“Os comerciantes e madeireiros já tinham visitado essas bacias hidrográficas, mas com a chegada das empresas exploradoras de petróleo essas atividades se intensificaram”, acrescentou.

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Inicialmente, as empresas não contratavam indígenas como trabalhadores, mas os comerciantes pagavam aos membros da comunidade para lhes fornecerem carne de caça e outros produtos, sob um sistema de trabalho por dívida que existia ao menos desde o boom da borracha que varreu a Amazônia ocidental no início do século 20.

O comerciante equiparia o caçador com suprimentos, que seriam descontados de seu pagamento quando entregasse as mercadorias acordadas. Com o polegar do comerciante na balança, no entanto, o caçador muitas vezes acabava com uma dívida infinita. A combinação entre o barulho de barcos, helicópteros, construção e cargas sísmicas, juntamente com a derrubada da floresta para acampamentos e novas aldeias para acomodar o afluxo de colonos, fez com que os animais de caça fugissem das regiões que tradicionalmente eram as zonas de caça das comunidades.

A caça e a pesca para alimentar tanta gente também reduziram a população de animais selvagens, enquanto os madeireiros chegaram com as empresas aproveitando a oportunidade para cortar e vender árvores como o mogno e o cedro, extraindo da floresta as grandes árvores de crescimento lento que produziam a madeira mais valiosa.

Por toda Bacia Amazônica, a vida gira em torno dos rios. Em muitas aldeias, as casas estão dispostas em fileiras ao longo da margem do rio e, embora não haja cercas, entende-se que a área em frente a cada casa é o porto da família – local onde amarram sua canoa e realizam as tarefas diárias.

O dia geralmente começa cedo com as crianças pegando baldes de água para cozinhar e acaba com a família tomando banho no rio quando o trabalho do dia termina. Entre esse período, as mulheres lavam roupas, limpam os peixes e os bebês em pequenas jangadas. Na maioria das comunidades, as pessoas pescam nos lagos próximos e as crianças brincam na água no calor do dia. Rios e riachos são a única fonte de água para beber e cozinhar.

Campos de petróleo envelhecidos, resíduos tóxicos

Um derramamento de óleo em 2014 na comunidade indígena Kukama de Cuninico, no rio Marañón, assim como em mais de uma dúzia de outros desde então, vieram do Oleoduto do Norte Peruano, construído na década de 1970 para transportar petróleo…

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Um oleoduto cruza o Rio Chambira na comunidade Urarina de Nueva Unión, no Bloco 8, onde ocorreram centenas de derramamentos de petróleo desde o início da produção no campo petrolífero. Foto: Ginebra Peña

Campos de petróleo envelhecidos, resíduos tóxicos

Um derramamento de óleo em 2014 na comunidade indígena Kukama de Cuninico, no rio Marañón, assim como em mais de uma dúzia de outros desde então, vieram do Oleoduto do Norte Peruano, construído na década de 1970 para transportar petróleo bruto dos então novos campos de petróleo amazônicos do país pela Cordilheira dos Andes até a costa do Pacífico. O oleoduto de 1.106 quilômetros era uma maravilha da engenharia na época, mas em 2014 tinha envelhecido e estava corroído. Uma agência de fiscalização do governo determinou que o oleoduto não havia sido inspecionado e mantido adequadamente.

Os dois campos de petróleo – Bloco 192, originalmente chamado de 1AB, e o Bloco 8 – também são cruzados por oleodutos antigos e cheios de poluição de derramamentos que nunca foram devidamente limpos. Os campos têm suas raízes em um boom do petróleo que atingiu a Amazônia Peru na década de 1970, engolindo dezenas de pequenas comunidades que sofreriam as consequências ao longo do meio século seguinte.

Na ocasião, o governo peruano estava ansioso para competir com o vizinho Equador, onde a petrolífera norte-americana Texaco começou a operar em 1967, e estabelecer seu limite territorial mais firmemente, após uma violenta guerra de fronteira. Na mesma época, uma crise energética desencadeada por cortes na produção pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo levou as empresas petrolíferas dos EUA a buscarem outras fontes.

A Petroperú descobriu petróleo na Bacia do Rio Corrientes em 1971 e a Occidental Petroleum, com sede nos EUA, rapidamente seguiu o exemplo nas proximidades. A nova legislação concedeu incentivos fiscais às empresas estrangeiras em troca da entrega ao Estado peruano de metade do petróleo produzido, e quase uma dúzia obteve concessões nos dois anos seguintes.

A maior parte do óleo, porém, era petróleo bruto, tornando-se caro para ser extraído. O boom se esgotou e a maioria das empresas estrangeiras se foi em meados da década de 1970. A Occidental Petroleum assumiu o Bloco 1AB e a Petroperú operou no Bloco 8, que incluía uma frágil área úmida que hoje faz parte da Reserva Nacional Pacaya Samiria.

Trabalhadores da comunidade de San Pedro, no baixo vale do Marañón, limpam um derramamento do oleoduto operado pela estatal Petroperú. Foto: Barbara Fraser

Nos primeiros anos, quando a produção era mais elevada, quase dois terços do petróleo do Peru vinham dos campos amazônicos de Loreto. Com o tempo, no entanto, isso diminuiu e, nos últimos anos, o oleoduto, construído para transportar cerca de 100.000 barris por dia, operou com apenas um quarto de sua capacidade.

Na década de 1980, até mesmo o governo peruano reconheceu que o Bloco 1AB era um dos lugares mais poluídos do país, seus ecossistemas estavam danificados ou foram destruídos por lixões inadequadamente protegidos, por derramamentos que nunca foram limpos e produziam água — a água quente, com alto teor de sal e metais, que é bombeada de poços com o petróleo — que simplesmente era despejada em rios e riachos.

Como as concessões de petróleo mudaram de mãos, a responsabilidade pela limpeza se tornou uma questão de acusações, pois é difícil provar qual empresa estava operando o lote quando ocorreram casos individuais de poluição.

O Bloco 1AB/192 foi operado pela Occidental de 1971 a 2000; pela companhia argentina Pluspetrol de 2000 a 2015; e pela canadense Pacific Stratum, posteriormente Frontera Energy, de 2015 a 2021. No momento, o bloco está ocioso, mas a estatal Petroperú disse que planeja operá-lo com um parceiro estrangeiro.

A Petroperú operou o Bloco 8 até 1996, quando a Pluspetrol o assumiu. A Pluspetrol, que hoje está sediada em Amsterdã, declarou falência em dezembro, colocando em dúvida o futuro do bloco. Em seu anúncio, a empresa culpou a agência de fiscalização ambiental do Peru por responsabilizá-la pela poluição que ocorreu enquanto outras empresas operavam o bloco.

As comunidades Achuar no Rio Corrientes processaram a Occidental Petroleum nos tribunais dos EUA em 2007 por danos ambientais, chegando a um acordo extrajudicial por uma quantia não especificada em 2015. Outras comunidades processaram no Peru por danos ambientais e problemas de saúde, mas a poluição persiste.

Mas quando a perfuração começou nos campos de petróleo, os rios tornaram-se tóxicos.

“Antes da companhia chegar, o rio estava limpo”, disse Vargas. Mas ela se lembra de um final de tarde quando foi tomar banho no rio depois de passar o dia cuidando de suas plantações no calor tropical.

“Senti meu corpo pegajoso”, disse ela. Ela tocou a língua em sua pele. “Meu corpo tinha sal por toda parte. Meu cabelo estava todo salgado.” Ela encontrou um riacho com água limpa, onde poderia tomar banho para lavar o sal, mas ela e o marido perceberam que deveriam parar de beber a água do rio. Algumas pessoas cavaram poços. Mas para quem não tinha riachos próximos os rios eram a única opção.

Décadas de poluição

Um oleoduto de 1.106 quilômetros – uma maravilha cara da engenharia na época, que se deteriorou com o tempo – acabou sendo construído para transportar óleo cru dos campos de petróleo do norte da Cordilheira dos Andes até o porto de Bayóvar, na costa do Pacífico, incluindo um ramal da aldeia de Nuevo Andoas, no rio Pastaza. Mas até a rede de oleodutos nos campos de petróleo ser concluída, no entanto, o petróleo era transportado no curso do rio por barcaças.

“Aquele petróleo levado pelas barcaças às vezes derramava – aquilo derramava muito”, disse Cariajano segurando as mãos a cerca de 30 centímetros de distância. “O rio estava negro. As garças estavam cobertas de óleo. Elas não conseguiam voar, então morriam. O peixe saltava e caía em cima do óleo.” Ninguém explicou aos moradores que o petróleo bruto e seus subprodutos eram tóxicos, então as pessoas recolhiam os peixes e às vezes coletavam óleo em recipientes, inserindo um pavio para fazer uma pequena lâmpada.

Duas décadas se passariam antes do Peru começar a implementar a legislação ambiental e mais uma antes das empresas que operam os Blocos 192 e 8 reinjetassem a água produzida no subsolo, em vez de despejá-la no meio ambiente. Enquanto isso, bilhões de barris de água salgada e contaminada foram bombeados para os rios e riachos. Somente em 2008, uma média de 363.000 barris de água produzida foram despejados no meio ambiente por dia no Bloco 8 e uma média de 576.000 por dia no Bloco 1AB/192. Os danos causados ​​por derramamentos de petróleo também persistiram, às vezes por muito tempo depois de qualquer óleo visível ter sido limpo.

Se os rios e os riachos são vitais para a vida cotidiana, são as cochas ou os lagos na Amazônia peruana que fornecem sustento aos moradores. À medida que os rios se elevam durante a estação chuvosa, a água é impulsionada para os riachos e através da floresta de planície para as cochas, que servem de viveiros de peixes. Os peixes migratórios, como o curimbatá (Prochilodus nigricans), o pacu (Mylossoma duriventre) e a cachala (Pseudoplatystoma fasciatum) aproveitam a abundância de alimentos da floresta inundada e retornam ao rio quando a estação chuvosa passa e as águas recuam.

Mas esse fluxo e refluxo, que espalha sedimentos carregados de nutrientes por toda a floresta, também pode provocar contaminantes de derramamentos de óleo que nunca foram limpos.

No dia em que Cariajano retornou ao túmulo da sua filha no cemitério coberto pela vegetação, Llerson Fachín, o jovem apu ou o líder de Vista Alegre, pisava no solo seco e rachado ao redor de Cocha Montano. Outrora um importante pesqueiro para sua comunidade, o lago é hoje apenas uma fração de seu antigo tamanho.

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Llerson Fachín, um líder da comunidade Kichwa de Vista Alegre, pisa no leito seco do lago conhecido como Cocha Montano no Bloco 192. Foto: Barbara Fraser

“Este lago tem uma história muito triste”, disse ele. “Desde a década de 1980, após um derramamento, o lago vem secando. Estamos perdendo nossos lagos, que são muito importantes para nós.”

Os moradores da comunidade se lembram do dia em que a água de Cocha Montano ficou negra por causa de um derramamento em um poço rio acima. O óleo cobriu o lago e fluiu para o Rio Tigre.

“Muitos peixes morreram aqui. A superfície estava negra, completamente preta, e os peixes boiavam”, disse Fachín, acrescentando que os contaminantes da área ao redor do poço de petróleo ainda são levados correnteza abaixo para o lago quando chove. Nenhuma das empresas que operaram no campo de petróleo o limpou.

“Nada foi reparado. Apenas a natureza o limpou – a água, a chuva, foi isso que fez a limpeza. À medida que a água subia e descia,  [o óleo] foi retirado pouco a pouco”, disse ele.

Sobre as operações de petróleo, acrescentou: “Ter essas coisas significou nada mais do que morte – morte e perda de nossos recursos naturais da floresta e de toda fauna, e perdemos também muitas vidas humanas. Não posso chamar isso de progresso.”

Enlutados pelas mortes dos lagos e das crianças

Mas a morte de Cocha Montano vai além da devastação ambiental. Também marca a ruptura da relação entre a comunidade Kichwa e o mundo natural com o qual suas vidas estão inextricavelmente entrelaçadas, no qual as florestas, os rios, os peixes e os animais e todos os seres vivos têm madres, literalmente “mães” – espíritos que nutrem e cuidam deles e que deixarão os humanos desamparados se forem maltratados.

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Julia Chuje, da comunidade de Remanente, está entre as mulheres Kichwa que enterraram crianças em cemitérios ao longo do Rio Tigre. Foto: Juanjo Fernández

Cada riacho, cada lago tem sua madre” disse Julia Chuje Ruíz, prima mais velha de Cariajano. “Algumas são jibóias, algumas são jacarés, algumas são raias, algumas são como jaús, mas dos grandes. Algumas são onças. Cada zona tem sua madre. Como o rio também — toda lagoa tem sua madre. Mas quando chega [a contaminação], a madre precisa partir. Ou morre ou parte. Aonde ela irá? E o lago seca. O mesmo aconteceu com Montano.”

Quando a mancha oleosa banhou o rio seguindo a correnteza, enegrecendo o lago e desembocando no Rio Tigre, “um jacaré gigante morreu ali. Um enorme jacaré saiu do lago. Passou por aqui, acima de Vista Alegre”, disse Julia Chuje, gesticulando para longe. “Há uma lagoa ali no rio. Um enorme jacaré passou por lá. Saiu da cocha e talvez tenha morrido.”

E o lago secou.

“Montano é um grande riacho com afluentes menores”, acrescentou ela. “Eles também secaram. Porque sua madre partiu. Sua madre morreu. Quem vai cuidar deles? Eles também morreram. A cocha secou. O riacho secou. Não restou nada.”

Julia Chuje tinha 13 anos quando os primeiros petroleiros chegaram a Vista Alegre limpando as linhas sísmicas, que mudariam sua vida e a de seus vizinhos de maneiras que nem podiam imaginar. “O que a empresa veio fazer?”,  questiona. “Aparentemente, veio para acabar com a gente. Tantas mortes e quem vai pagar? Quem vai pagar pelo mal que foi feito?”

Nenhuma investigação abrangente foi feita, então ninguém sabe realmente o que matou a maior parte de uma geração de crianças em Vista Alegre, juntamente com alguns dos jovens recrutas em um posto militar próximo, em um período bastante curto.

José Alvarez, que hoje chefia o escritório de biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente do Peru, tropeçou no cemitério cheio de pequenas sepulturas no início dos anos 1990, quando trabalhava na bacia do Tigre. De acordo com especialistas que ele consultou na época, os sintomas eram consistentes com hepatite – provavelmente trazidos para a área por trabalhadores dos campos de petróleo e possivelmente exacerbados pela exposição a contaminantes no meio ambiente. As vítimas foram enterradas nos arredores do cemitério comunitário e as famílias se mudaram. Alguns se estabeleceram do outro lado do rio, a uma curta viagem de barco, onde hoje está a Vista Alegre, e alguns na comunidade vizinha de Remanente ou em outras aldeias.

Aos poucos a floresta se apropriou das sepulturas, mas não consegue apagar a lembrança.

O cemitério “está abandonado, porque é longe para vir”, disse Cariajano de pé entre as árvores. Além de sua filha recém-nascida, mais tarde perdeu outros dois filhos, que estão enterrados não muito distante dali.

“Meus filhos morreram vomitando sangue”, disse ela. “Estou triste pelos meus filhos. Até as antas morreram bebendo água daquele riacho. Essa contaminação ainda existe. O governo não se importa. Eles estão em paz – eles comem, bebem, seus filhos estão bem e estamos ferrados aqui com essa contaminação”.

Ela descansou a mão na pequena lápide de madeira.

“Esta é minha primeira filha”, disse ela. “Ela estaria com 35 anos hoje.”

Nota do editor: Lindaura Cariajano Chuje morreu de câncer de pele em 2019.

Traduçâo

Jessica X. Valenzuela / Espanhol

Jerusa Rodrigues / Português

Infográficos

Fermín García-Fabila

Desenho web

Luis J. Jiménez

Este projeto foi produzido com o apoio da Fundação Gordon e Betty Moore e sua Iniciativa Andes-Amazônia